[...] SE ELA SILENCIA SOBRE O QUE PODE AFETAR SEU PRÓPRIO DESTINO, ELE SILENCIA SOBRE O QUE PODE MUDAR O DELA
Anos 50. Um garoto de 15 anos, classe média, apaixona-se por uma mulher com o dobro da sua idade. Ela é pobre, cobradora de bonde. Rude, séria, inicia-o numa vida onde cabem sexo, amor, interesses comuns.
Ele lê para ela. Ela o faz saber que ele é bom leitor. Ele nada sabe da vida dela. Talvez por isso não entenda por que um dia ela vai embora, sem despedida, sem recado.
Anos mais tarde, estudante de direito, ele assiste a um julgamento. Para sua surpresa, ela é uma das acusadas. Ao longo das sessões, descobre que ela é analfabeta. E, também, a vergonha que ela sente. Para encobri-la, ela assume sozinha a culpa de crimes pelos quais ela e outras mulheres são julgadas.
Ele poderia ter dito o que sabia, mas se cala para não se tornar o agente da exposição da vergonha dela. E para não revelar o que viera escondendo: que a conhecia e a amara.
A vergonha dele era mais superficial: não queria ser desqualificado pelos outros se soubessem de suas relações com ela. A dela era uma vergonha estrutural, uma vergonha de si.
Ser analfabeta a desfigurava no mais profundo do seu ser.
Ambos se calam diante do que os envergonha. Mas, se ela silencia sobre o que pode afetar seu próprio destino, ele silencia sobre o que pode mudar o dela.
O analfabetismo dela a mantém ignorante sobre o que se passa no mundo e sobre o real alcance de suas decisões. Quase a desculpa. Assim como sua prisão quase a absolve. Mas o saber dele o condena a uma culpa sem perdão nem liberdade.
"O Leitor" é um grande filme. O nazismo é seu pano de fundo, mas esse acontecimento poderia ser substituído por outro sem mudar a história. É um bom filme porque a questão central é a de todos nós.
Quem não experimentou alguma vergonha profunda em relação a si mesmo? Quem, para esconder aquilo de que se envergonhou, não agiu contra si mesmo? E contra os outros?
Quem não agiu e, portanto, não determinou seu destino por ignorância dos fatos?
Quem de nós não se omitiu diante de algo que poderia interferir favoravelmente no destino de outra pessoa? A questão central do filme gira em torno do que torna dramática a existência humana: o fato de que tudo o que fazemos (e dizemos) é fruto de uma escolha e tem consequências.
Mesmo quando nos calamos ou nos omitimos. Mesmo quando as consequências não foram intencionais.
Em dois momentos, no filme, uma tese se afirma: não importa o que sentimos ou o que pensamos, mas o que fazemos.
Não importa mesmo. O que se passa dentro de nós não tem expressão no mundo. Só nossos atos e suas consequências aparecem e, deste modo, existem, porque há um leitor, um expectador que descubra algum sentido para o que fazemos. Portanto, para quem somos.
Dos nossos sentimentos, pensamentos e intenções, só nós sabemos. Somos seus únicos leitores. Que outra explicação para as vergonhas que sentimos? Ou para as culpas que carregamos?
DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica do Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana
dulcecritelli@existentia.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário