quarta-feira, 21 de outubro de 2009
Instintos primitivos
Aqueles latidos o enlouqueciam há meses. Saltava da cama às 7h20, hipnotizado pela sinfonia canina. Caminhava até a janela ruminando palavrões e, enquanto retirava a remela dos olhos, amaldiçoava a nona geração daquela rotunda senhora.
Preparava o café da manhã mergulhado em pensamentos contraditórios: um novo bilhete exigindo providências? Uma ação judicial? Não, há tantas coisas mais importantes com as quais temos de nos ocupar. Além disso, um viralatas não costuma viver mais de 15 anos. A resposta da justiça viria antes disso? Ele mesmo não imaginava viver mais 15 anos.
Trabalhava em casa, e sempre que os latidos roubavam sua concentração, passava a arquitetar planos mirabolantes. Em geral, as “soluções” imaginadas tinham requintes de crueldade, mas na maior parte das vezes eram simplesmente bizarras. Meses de latidos ininterruptos tinham despertado seus instintos mais primitivos. Sonhava com o silêncio, mas queria vingança como compensação pelo desequilíbrio gerado – ou exacerbado.
Pensou em veneno. Não, jamais envenenaria os pobres cães, tão vítimas quanto ele do descaso de seus donos. Imaginava aquela mulher gorda agonizando enquanto engolia avidamente bombons “enriquecidos”.
Tarde da noite, já na cama, colocava de lado o livro que tentava ler e se punha de pé, com o firme propósito de descer de cuecas até a maldita casa, arrombar os portões e promover a libertação de todos os oprimidos.
- Basta! Chega de martírio!, bradaria diante de olhares atônitos e das luzes das viaturas de polícia.
Numa tarde modorrenta de novembro, refugiou-se no lavabo, o local da casa menos suscetível aos latidos. Num livro de citações, leu a seguinte frase: “falta de ética é aquilo que os outros fazem de errado”. Pegou na prateleira de remédios dois cotonetes e perfurou os próprios tímpanos.
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