segunda-feira, 29 de junho de 2009

A lógica do pior

MIKA LINS SE TRAVESTE DE HOMEM PARA MERGULHAR NAS PROFUNDEZAS DE UM PERSONAGEM DE DOSTOIÉVSKI

por Manuel da Costa Pinto

Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável." Assim começa o livro "Memórias do Subsolo", de Dostoiévski, que a atriz Mika Lins leva aos palcos num monólogo em cartaz, a partir desta quarta-feira, no Sesc Consolação.

Nessa obra de 1864, um personagem anônimo -precursor dos anti-heróis de Kafka e Beckett- destila seu rancor e expõe suas obsessões contra a soberba dos "homens de ação", que vivem a ilusão de transformar o mundo com os instrumentos da ciência e com as utopias "do belo e do sublime", negando assim as contradições e perversidades inerentes ao ser humano.

Para encarnar esse "rato de consciência hipertrofiada", que fala pelos cotovelos num discurso hipnotizante, Mika descontextualizou o livro de sua cena original, a São Petersburgo do século 19. "O homem do subsolo poderia estar aqui, no buraco ao lado", diz a atriz, que já encarnou a pintora mexicana Frida Kahlo no espetáculo "Frida" e atuou nas peças "Cacilda!" (dirigida por José Celso Martinez Corrêa) e "O Alienista" (direção de sua mãe, Eugênia Thereza de Andrade, fundadora da Escola de Arte Jogo Estúdio, onde a atriz se formou).

Entre baforadas que desafiam a lei antitabagista que proíbe fumar até nos palcos (a temporada acaba em 7 de agosto, na semana em que a lei entra em vigor), Mika falou à Revista como se estivesse no palco, engatando suas palavras nas frases ácidas do "homem do subsolo", destacadas entre aspas na entrevista a seguir.

Por que você escolheu esse personagem quase abjeto?
Qualquer pessoa que tem um mínimo de reflexão e tem dúvidas sobre a existência margeia o subsolo. A gente lida moralmente com rancores e recalques no dia a dia. O "homem do subsolo" defende o direito de escolha -algo básico, mas fora de moda. Há pessoas que são tristes, têm menos crença na vida e nos relacionamentos, preferem ficar solteiras e não ter filhos... Por que não? Para que tomar Anafranil ou Lexotan? "De onde tiraram que o homem precisa de uma vontade sensata? O homem precisa de uma vontade independente, custe o que custar e leve aonde levar."
Por que a gente não pode mais ter dor, tristeza? Falta esse questionamento que nos leve a flertar com nossa liberdade pessoal. "Amar só a prosperidade é até indecente. Não estou defendendo o sofrimento nem a prosperidade. Defendo o capricho. O meu capricho, e que ele me seja assegurado."

Por que você optou pela primeira parte do livro?
Existe uma febre de monólogos na cidade e no país, por causa dos meios de produção, falta de verba para o teatro etc. Mas, nesse caso, o mais determinante foi o discurso inicial, "O Subsolo". As maldades que ele comete na segunda parte ["A Propósito da Neve Molhada"], eu já havia lido em outras obras de Dostoiévski; mas o que consegue corromper você é o discurso da primeira parte.

Como foi sua aproximação com Dostoiévski?
Ele foi um mito na minha família, é o escritor preferido de minha mãe. Com 13 ou 14 anos, li "Crime e Castigo". Ele tem essa coisa "perigosa" quando se é jovem: fisga por caminhos que obrigam a parar e ter autocrítica -se não, daqui a pouco, você está com um machado matando uma velha [como Raskólnikov, o protagonista]

Você buscou algum modelo para essa voz subterrânea?
No livro, quando você não entende uma passagem, pode reler; no teatro, não. Fiquei pensando em como manter o ritmo do pensamento, mas fazendo pausas para o espectador assimilar. Daí aconteceu uma descoberta: estava em Portugal, na casa da [cantora] Eugénia de Melo e Castro, passando roupa e assistindo à TV, quando vejo o escritor António Lobo Antunes, com aquela fala debochada e pausas enormes, constrangedoras para a linguagem televisiva. Ele tem uma coisa mal-humorada, "subsolesca", que virou inspiração.

O que você vê mais à sua volta: homens de ação ou idealistas?
Você identifica por aí as pessoas das "sutilezas do belo e do sublime". Mas a maioria são homens de ação, gente que, diante do impossível, imediatamente se conforma, se refugia num bando de livros de autoajuda do tipo "Como Vencer na Vida". Dá inveja dessas pessoas; a sensação é que essa postura tem menos conflito, porque a dúvida dói.

E como é viver um personagem masculino?
Fazer um homem é o de menos. O difícil é a lógica do raciocínio dele. Mas, vendo filmes, me dei conta de que o homem é mais livre para se expressar. Nós, mulheres, somos escravas da limpeza de expressão facial, da limitação de não enrugar, não entortar o rosto, como se tivéssemos um botox interno. Optei por deixar a palavra determinar a expressão, mesmo que seja algo baixo -como a vida.

Em termos cenográficos, como é a montagem?
Os únicos objetos em cena são uma cadeira, um maço de cigarros e uma caixa de fósforos.

Com a lei que proíbe fumar até no palco, você vai convidar o governador José Serra?
Essa lei é patética. Legislar sobre o que acontece em cena é humilhação. Ela quer impor "o belo e o sublime" como se a sujeira e o vício não existissem. Na Escócia, onde há lei semelhante, um ator foi proibido de fumar charuto numa montagem sobre Churchill! Ele tirou a peça de cartaz... A temporada acaba na semana em que começa a valer a lei. Para a última apresentação, talvez tenha de pedir autorização para um juiz.

No livro, o homem do subsolo não fuma, mas você pode mentir para o juiz. Ele não vai ler...
Não fuma, mas tem vícios piores. O cigarro tem a ver com a personagem, é um acessório do pensamento. Por que não podemos desejar para nós mesmos o pior caminho?



Memórias do subsolo
Direção: Cassio Brasil
Sesc Consolação. R. Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 3234-3000. Qua. a sex.: 21h. Até 7/8. Ingr.: R$ 2,50 a R$ 10. Não recomendado para menores de 12 anos.

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