segunda-feira, 29 de junho de 2009

Amores e mudanças

Como esbarrar num amor que nos transforme? O filme "Tinha que Ser Você" dá uma dica preciosa

Por Contardo Calligaris

QUANDO A VIDA da gente está emperrada (o que não é raro), será que faz sentido esperar que um encontro, um amor, uma paixão se encarreguem de nos dar um novo rumo? Provavelmente, sim -no mínimo, é o que esperamos: afinal, o poder transformador do encontro amoroso faz o charme de muitos filmes e romances.
Os especialistas validam nossa esperança. Jacques Lacan, o psicanalista francês, dizia, por exemplo, que o amor é o sinal de uma "mudança de discurso", ou seja, na linguagem dele, de uma mudança substancial na nossa relação com o mundo, com os outros e com nós mesmos. Claro, resta a pergunta: o que significa "sinal" nesse caso?
Duas possibilidades: o amor surge quando está na hora de a gente se transformar ou, então, é por amor que a gente se transforma. Não é necessário tomar partido: talvez as duas sejam verdadeiras.
Seja como for, volta e meia, alguém me pede uma receita: como esbarrar num amor que nos transforme? A resposta trivial diz que os encontros acontecem a cada esquina: difícil é enxergá-los e deixar que eles nos transformem, ou seja, difícil é ter a coragem de vivê-los. Aqui vai um exemplo.
O filme "Tinha que Ser Você", escrito e dirigido por Joel Hopkins, além de ser uma pequena dádiva, oferece uma "dica" preciosa sobre as condições que fazem que um amor "engate". É a história de um encontro ao qual os protagonistas tentam dar uma chance -a chance de transformar suas vidas.
Parêntese. Harvey (Dustin Hoffman) está na casa dos sessenta, e Kate (Emma Thompson) na dos cinquenta. É possível ver no filme uma parábola em prol da ideia de que nunca é tarde demais para deixar que um amor nos dê um novo rumo.
O título original, "Last Chance Harvey" (última chance Harvey), iria nessa direção: é agora ou nunca. Pode ser, mas talvez toda chance que a vida nos dá seja mesmo a nossa última.
Fora isso, o filme começa nos mostrando que a vida de Harvey é tão emperrada quanto a de Kate. Em ambos, há uma certa decepção por não conseguir (ou não ter conseguido) aventurar-se a viver seus sonhos -ser pianista de jazz para Harvey, e romancista para Kate. Os dois estão sozinhos e conformados com uma certa mediocridade afetiva: Kate se encaminha para ser a filha que cuidará para sempre da velha mãe, e Harvey já desistiu de ser o pai da filha de quem ele se distanciou, muitos anos antes, no divórcio que o separou da mãe dela.
Em suma, Harvey e Kate estão precisando de uma mudança.
Por que o encontro de Harvey e Kate teria mais sucesso do que os encontros às escuras que Kate se permite, de vez em quando? Por que eles não balbuciariam apenas a estupidez inibida que é habitual nesses casos? Simples, mas crucial: a conversa deles começa com uma sinceridade quase cínica. A "cantada" inicial de Harvey é o oposto do fazer de conta que é a regra das relações sociais, pois Harvey se apresenta confessando o fracasso de sua vida.
Logo, Harvey e Kate passeiam por Londres discorrendo e se conhecendo. Os espectadores descobrirão se eles saberão dar uma chance ao encontro ou, então, voltarão cada um para seu "conforto".
O passeio pela cidade evoca dois filmes de Richard Linklater, que estão entre meus preferidos, "Antes do Amanhecer", de 1995, e "Antes do Pôr-do-sol", de 2004.
No primeiro, Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy) encontram-se, passam um dia nas ruas de Viena e, enfim, separam-se. No segundo, eles se encontram de novo, em Paris, nove anos depois, e, também passeando, imaginam, de alguma forma, a outra vida que poderia ter sido a deles se, no fim daquele dia em Viena, eles tivessem apostado no futuro de seu encontro.
Aqui, uma recomendação prosaica que emana dos três filmes: se você procura um grande encontro amoroso, sempre use calçados confortáveis, porque nunca se sabe por quantos quilômetros se estenderão suas deambulações amorosas.
Brincadeira à parte, os filmes de Linklater talvez sejam mais tocantes -entre outras coisas, porque eles conferem uma beleza melancólica a uma desistência que é muito parecida com as renúncias às quais nos resignamos a cada dia. Mas o filme de Hopkins, "Tinha que Ser Você", é mais generoso, porque ele nos deixa com uma sugestão: o diálogo que leva ao amor, que dá a cada um a vontade de se arriscar, não surge da sedução e do charme, mas da coragem de nos apresentarmos por nossas falhas, feridas e perdas.

A lógica do pior

MIKA LINS SE TRAVESTE DE HOMEM PARA MERGULHAR NAS PROFUNDEZAS DE UM PERSONAGEM DE DOSTOIÉVSKI

por Manuel da Costa Pinto

Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável." Assim começa o livro "Memórias do Subsolo", de Dostoiévski, que a atriz Mika Lins leva aos palcos num monólogo em cartaz, a partir desta quarta-feira, no Sesc Consolação.

Nessa obra de 1864, um personagem anônimo -precursor dos anti-heróis de Kafka e Beckett- destila seu rancor e expõe suas obsessões contra a soberba dos "homens de ação", que vivem a ilusão de transformar o mundo com os instrumentos da ciência e com as utopias "do belo e do sublime", negando assim as contradições e perversidades inerentes ao ser humano.

Para encarnar esse "rato de consciência hipertrofiada", que fala pelos cotovelos num discurso hipnotizante, Mika descontextualizou o livro de sua cena original, a São Petersburgo do século 19. "O homem do subsolo poderia estar aqui, no buraco ao lado", diz a atriz, que já encarnou a pintora mexicana Frida Kahlo no espetáculo "Frida" e atuou nas peças "Cacilda!" (dirigida por José Celso Martinez Corrêa) e "O Alienista" (direção de sua mãe, Eugênia Thereza de Andrade, fundadora da Escola de Arte Jogo Estúdio, onde a atriz se formou).

Entre baforadas que desafiam a lei antitabagista que proíbe fumar até nos palcos (a temporada acaba em 7 de agosto, na semana em que a lei entra em vigor), Mika falou à Revista como se estivesse no palco, engatando suas palavras nas frases ácidas do "homem do subsolo", destacadas entre aspas na entrevista a seguir.

Por que você escolheu esse personagem quase abjeto?
Qualquer pessoa que tem um mínimo de reflexão e tem dúvidas sobre a existência margeia o subsolo. A gente lida moralmente com rancores e recalques no dia a dia. O "homem do subsolo" defende o direito de escolha -algo básico, mas fora de moda. Há pessoas que são tristes, têm menos crença na vida e nos relacionamentos, preferem ficar solteiras e não ter filhos... Por que não? Para que tomar Anafranil ou Lexotan? "De onde tiraram que o homem precisa de uma vontade sensata? O homem precisa de uma vontade independente, custe o que custar e leve aonde levar."
Por que a gente não pode mais ter dor, tristeza? Falta esse questionamento que nos leve a flertar com nossa liberdade pessoal. "Amar só a prosperidade é até indecente. Não estou defendendo o sofrimento nem a prosperidade. Defendo o capricho. O meu capricho, e que ele me seja assegurado."

Por que você optou pela primeira parte do livro?
Existe uma febre de monólogos na cidade e no país, por causa dos meios de produção, falta de verba para o teatro etc. Mas, nesse caso, o mais determinante foi o discurso inicial, "O Subsolo". As maldades que ele comete na segunda parte ["A Propósito da Neve Molhada"], eu já havia lido em outras obras de Dostoiévski; mas o que consegue corromper você é o discurso da primeira parte.

Como foi sua aproximação com Dostoiévski?
Ele foi um mito na minha família, é o escritor preferido de minha mãe. Com 13 ou 14 anos, li "Crime e Castigo". Ele tem essa coisa "perigosa" quando se é jovem: fisga por caminhos que obrigam a parar e ter autocrítica -se não, daqui a pouco, você está com um machado matando uma velha [como Raskólnikov, o protagonista]

Você buscou algum modelo para essa voz subterrânea?
No livro, quando você não entende uma passagem, pode reler; no teatro, não. Fiquei pensando em como manter o ritmo do pensamento, mas fazendo pausas para o espectador assimilar. Daí aconteceu uma descoberta: estava em Portugal, na casa da [cantora] Eugénia de Melo e Castro, passando roupa e assistindo à TV, quando vejo o escritor António Lobo Antunes, com aquela fala debochada e pausas enormes, constrangedoras para a linguagem televisiva. Ele tem uma coisa mal-humorada, "subsolesca", que virou inspiração.

O que você vê mais à sua volta: homens de ação ou idealistas?
Você identifica por aí as pessoas das "sutilezas do belo e do sublime". Mas a maioria são homens de ação, gente que, diante do impossível, imediatamente se conforma, se refugia num bando de livros de autoajuda do tipo "Como Vencer na Vida". Dá inveja dessas pessoas; a sensação é que essa postura tem menos conflito, porque a dúvida dói.

E como é viver um personagem masculino?
Fazer um homem é o de menos. O difícil é a lógica do raciocínio dele. Mas, vendo filmes, me dei conta de que o homem é mais livre para se expressar. Nós, mulheres, somos escravas da limpeza de expressão facial, da limitação de não enrugar, não entortar o rosto, como se tivéssemos um botox interno. Optei por deixar a palavra determinar a expressão, mesmo que seja algo baixo -como a vida.

Em termos cenográficos, como é a montagem?
Os únicos objetos em cena são uma cadeira, um maço de cigarros e uma caixa de fósforos.

Com a lei que proíbe fumar até no palco, você vai convidar o governador José Serra?
Essa lei é patética. Legislar sobre o que acontece em cena é humilhação. Ela quer impor "o belo e o sublime" como se a sujeira e o vício não existissem. Na Escócia, onde há lei semelhante, um ator foi proibido de fumar charuto numa montagem sobre Churchill! Ele tirou a peça de cartaz... A temporada acaba na semana em que começa a valer a lei. Para a última apresentação, talvez tenha de pedir autorização para um juiz.

No livro, o homem do subsolo não fuma, mas você pode mentir para o juiz. Ele não vai ler...
Não fuma, mas tem vícios piores. O cigarro tem a ver com a personagem, é um acessório do pensamento. Por que não podemos desejar para nós mesmos o pior caminho?



Memórias do subsolo
Direção: Cassio Brasil
Sesc Consolação. R. Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 3234-3000. Qua. a sex.: 21h. Até 7/8. Ingr.: R$ 2,50 a R$ 10. Não recomendado para menores de 12 anos.

domingo, 21 de junho de 2009

terça-feira, 16 de junho de 2009

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Livro registra a história do samba de São Paulo

O samba de São Paulo sofre de carência. Ele sente a falta de uma bibliografia. Por ser vítima, sabe bem que, quando o passado depende apenas da transmissão oral, a história corre um risco maior de manipulação. Em "Batuqueiros da Pauliceia", André Domingues e Osvaldinho da Cuíca contrariam esse fato ao aliar um "relato afetivo", baseado em memórias, ao material consolidado por estudos fundamentais como "O Samba Rural Paulista", do modernista Mário de Andrade.

"Quando conversei com o Osvaldinho para o livro, pensei que ele falaria de grandes artistas e seguiria a trajetória consagrada da MPB", diz o pesquisador André Domingues, de 32 anos. "O que ele me contou foram detalhes essenciais resgatados por uma memória cercada pelo afeto." Mesmo narrada em primeira pessoa, a obra não se perde na subjetividade ao falar do samba paulista, "um buraco negro" para os pesquisadores.

As entrevistas com o sambista começaram em 2003. Osvaldinho passava por sessões de quimioterapia para tratar um câncer na garganta. Domingues diz que os excluídos da história oficial gostam de romantizar suas trajetórias - têm a necessidade de elevar seus feitos. Segundo ele, em nenhum momento Osvaldinho da Cuíca, de 69 anos, afirmou ser um dos grandes batuqueiros de São Paulo. "Mesmo se tivesse tentado, eu não deixaria que ele puxasse a sardinha", brinca.

A obra se divide em duas seções - "Samba de Rua" e "Samba Profissional". Ela questiona a ideia, hoje consensual, de que o samba-de-bumbo da cidade de Pirapora do Bom Jesus é a semente do samba paulista. Apesar de ser um balaio que reuniu os diversos ritmos trazidos por romeiros, ele é apenas um dos elementos a formar o gênero.

Para entender o "samba autenticamente paulista", é preciso lançar um olhar múltiplo no tempo e no espaço. O gênero mescla influências do samba rural do século 19, da batucada de trabalhadores braçais no Largo da Banana (hoje região do Memorial da América Latina) e dos engraxates do centro, nas primeiras décadas do século 20.

Os autores lembram a importância do rádio, a partir dos anos 1920, na transmissão do samba carioca. A obra aborda o carnaval paulista, marcado pela solidariedade e intrigas. Começando pela marcha sambada dos cordões, ele ressalta a oficialização do carnaval em 1968 como o ponto em que o gênero perde suas particularidades, assemelhando-se ao carioca. O bumbo era substituído pelo repinique e o tamborim, instrumentos que aceleraram o andamento. Em 1972, com o fim dos cordões, acabou o samba autenticamente paulista, segundo Osvaldinho. "Hoje ele não existe mais", diz. "O samba tem uma forma única, que é a carioca".

Sem lamentar as perdas do passado, "Batuqueiros da Pauliceia" fala das transformações do gênero. Aborda o fenômeno do samba-rock nas boates da capital, a vanguarda paulistana e o pagode romântico dos anos 1990, que, para Osvaldinho, provocou o surgimento de grupos preocupados com o "samba de raiz". A rejeição ao novo contraria a essência de São Paulo que é a mesma do samba: o poder de incorporar a diversidade.

Esquecidos, mas fundamentais

Nem Adoniran Barbosa. Tampouco Paulo Vanzolini. "Geraldo Filme é o homem que teve mais importância para o nosso samba", diz Osvaldinho da Cuíca. "Jamais fez música de amor, todas eram de cunho social, político e cultural." Segundo Osvaldinho, além de líder consciente, Geraldo Filme foi quem mais compôs sambas sobre São Paulo. "E também falou dos pobres, dos negros e dos índios."

"Batuqueiros da Pauliceia" destaca sambistas importantes para a criação da estética do gênero em São Paulo, hoje esquecidos. Começa falando de Raul Torres, autor de "A Cuíca Está Roncando" e praticante de uma "linhagem sertaneja". "Que é diferente do sertanejo atual, um bolero brega", diz. Ele menciona as biografias de Henricão, Zeca da Casa Verde, Vassourinha, Risadinha, Blecaute, Toniquinho Batuqueiro e Carlão.

Osvaldinho recorda o papel de Nenê da Vila Matilde, que "importou" as características do carnaval carioca. Fala de Germano Mathias, remanescente do samba feito por engraxates - seu jeito de dançar ainda conserva as características da tiririca. E debate a origem dos Demônios da Garoa, grupo que ele integrou por mais de 10 anos. Osvaldinho da Cuíca - pesquisador, ritmista, compositor - gravou dois CDs fundamentais: "História do Samba Paulista, Volume 1" e "Em Referência ao Samba de São Paulo".

Batuqueiros da Pauliceia
Editora: Barcarolla
216 págs.
Preço sugerido: R$ 34

Fonte:Agência Estado

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Ná Ozzetti lança "Balangandãs", com músicas de Carmem Miranda


Ná Ozzetti tem a voz e a inteligência necessárias para, num disco com o repertório de Carmen Miranda, não fazer "releituras" modernosas das excelentes canções nem exacerbar o estilo de Carmen -há quem, à guisa de homenagem, cometa paródias grotescas. Respeita tanto a beleza e a graça de "Camisa Listada", "Ao Voltar do Samba", "Na Batucada da Vida" e outras joias que nem ressalta tanto o humor de "...E o Mundo Não se Acabou". Mas esse cuidado, construído em estúdio e não numa gravação ao vivo, é importante para um disco que busca ser original sem deixar de ser reverente.

POR QUE OUVIR: Ná se cerca de grandes músicos, como Dante Ozzetti e Mário Manga, que fazem as vezes do Bando da Lua e dão o clima "um pé no passado, outro no presente". (LUIZ FERNANDO VIANNA)

Gravadora: MCD.
Quanto: R$ 30, em média.

Fonte: Folha de S.Paulo